quarta-feira, 22 de junho de 2011

O Poeta é um fingidor


Já não me importo

Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.


Análise do poema "já não me importo"


Datado de 2/9/1935, este poema é por isso um dos mais tardios poemas ortónimos de Fernando Pessoa.
Como é comum na sua poesia ortónima, não há grandes artifícios ou emoções destiladas por linguagem colorida. Realmente podemos atestar como o "personagem ortónimo" representa, no todo do drama em gente Pessoano, aquela parte restante, ele é verdadeiramente o resto na conta complexa do jogo heteronímico. Parafraseando Pessoa, o ortónimo é ele menos os outros eles, é ele menos ele, é por isso mesmo uma reflexo interior que sai para fora e quando fora se acha inadaptado, disforme, nebuloso.
Pessoa morreria em Novembro deste mesmo ano. Por isso quem ele era em Setembro ressoa nestas palavras secas. Era já um homem de certo modo amargurado, e sobretudo desiludido. Desiludido com o governo do país que o isolara, e desiludido também com a própria esperança em organizar a sua vida, a sua obra, o seu futuro.
Grande parte dos poemas ortónimos reflectem este mesmo estado de espírito da perda de esperança, de uma grande abulia, um quase torpor de existir. Mas neste poema esse sentimento torna-se mais real, tomando em consideração que faltariam apenas alguns meses para o grande poeta desaparecer para sempre. O que ele pensava aqui provavelmente reflecte o que ele pensaria até à sua morte.
Vamos ler então o poema com atenção:
"Já não me importo / Até com o que amo ou creio amar. / Sou um navio que chegou a um porto / E cujo movimento é ali estar" - o poeta deixa passar na escrita o sentimento de perda completa da sua própri a vontade de viver. Não é um sentimento suicida, mas talvez pior que isso, um sentimento de anulação completa do ser. Ele "não se importa" com nada, "até com o que ama ou crê amar". Esta grande indiferença lembra um pouco o Campos final, aquele Campos já engenheiro reformado e desiludido com a vida e sobretudo desiludido com o seu próprio entusiasmo enquanto jovem. Também Pessoa em seu próprio nome se diz desiludido com esse passado. O seu "barco", a sua vida chegou ao fim, "ao porto" e o que tem ele para mostrar? Nada. O seu presente é apenas "ali estar", ou seja, ele existe é certo, mas para quê?
"Nada me resta / Do que quis ou achei. / Cheguei da festa / Como fui para lá ou ainda irei" - a chegada ao tal "porto" não se revelou como nada de novo. Do passado nada lhe resta, e não achou no "porto" nada daquilo que procurava. Nada do que "quis ou achou". Chegou da "festa da vida" como foi para ela...
"Indiferente / A quem sou ou suponho que mal sou," - ...indiferente a tudo e sobretudo sem continuar a saber quem era.
"Fito a gente / Que me rodeia e sempre rodeou, / Com um olhar / Que, sem o poder ver, / Sei que é sem ar / De olhar a valer. / E só me não cansa / O que a brisa me traz / De súbita mudança / No que nada me faz" - a sua atitude ao que o rodeia é de uma grande indiferença, ele reforça-o nestas duas estrofes (que por utilidade de leitura junto). Ele olha quem o rodeia sem olhar verdadeiramente. Tudo o cansa. É o grande tédio existencialista de Sartre, a náusea dos anos 80, mas mais do que isso, muito além disso, é uma náusea não só com a vida mas com o universo: é um ressentimento com Deus, uma raiva subtil e apagada para com toda a Natureza. Há que notar que há uma grande revolta desconhecida neste comportamento passivo: Pessoa aqui recusa-se a existir, e esta é a única grande revolta humana, a única revolta possível.

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