terça-feira, 17 de abril de 2012

O Poeta é um fingidor



Quando as crianças brincam


Quando as crianças brincam
E eu as ouço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração



Análise do poema "Quando as crianças brincam"


O poema "Quando as crianças brincam" é um poema ortónimo tardio de Fernando Pessoa, datado de 5/9/1933.

O tema da infância é um tema recorrente na obra ortónima (escrita com o próprio nome) de Pessoa. É um tema simultaneamente reconfortante e doloroso para Pessoa e é fácil de compreender porquê.

Fernando Pessoa viveu uma infância dita feliz até aos seus 6 anos. É com a morte do pai que a unidade (e paz) familiar se quebra de modo definitivo e irreversível, culminando na traumática mudança dos Pessoa para a distante África do Sul, tem o menino Fernando apenas 8 anos. Ele - uma criança precoce, quiçá mesmo sobredotada - tinha uma consciência do que lhe estava a acontecer e registou todos os pormenores dessa mudança na sua psique.

Por isso a sua infância é agridoce - se por um lado houve uma altura de verdadeira felicidade, a barreira dos 6 anos marca o princípio de uma tristeza imensa que sempre o acompanhará. Ele recordará assim, de modo ambivalente, este período da sua vida. Há poemas em que a infância é recordada como tempo feliz (poema "quando era criança" por ex) e outros em que ela é recordada pelo oposto.

O poema em análise colhe, por assim dizer, destes dois mundos. Nele Pessoa recorda a infância tanto pelo que teve de feliz como de infeliz.

Mas passemos à análise propriamente dita do mesmo:


Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

A memória visual de Pessoa é activada pelo movimento das criança, sobretudo pelos sons. A memória humana guarda eventos, muitas da vezes, relacionando-os com os sentidos (cheirar algo pode activar a nossa memória, assim como ver algo, ou sentir algo com as mãos). Neste caso é o som que activa a memória de Pessoa. Mas vemos que a actividade das crianças activa em Pessoa uma alegria e não propriamente uma memória imediata.

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

A razão porque é actividade uma "alegria" e não uma "memória imediata", tem a ver com aquela ambivalência de que falávamos: a infância de Pessoa foi feliz e infeliz, e ele não pode lembrar-se dela sem esquecer estes dois lados da mesma. No caso da 2.ª estrofe, Pessoa tira uma alegria de uma infância que não teve, precisamente porque a sua própria infância não foi completamente feliz. Não o foi completamente, mas também não o foi totalmente infeliz. É esta réstea de felicidade, da vida até aos 6 anos, que de certo modo torna Pessoa são, que lhe permite lembrar um pouco da felicidade infantil. É a partir deste pouco que Pessoa extrapola o resto - este pouco serve-lhe para imaginar uma "infância totalmente feliz". É esta "memória projectada" que é dele, quando ele olha para as crianças. Ele imagina assim como poderia ter tido uma infância totalmente feliz e faz desta projecção a sua realidade momentânea.

Por isso ele diz que a memória "não foi de ninguém". É uma memória construída, projectada a partir de uma outra memória parcial.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.

Esta pequena felicidade é o que suporta Pessoa nos momentos mais difíceis. Como ele, nós também em momentos recordamos a nossa infância, principalmente quando na nossa vida adulta nos encontramos em dificuldades - a infância, sobretudo a infância, é um porto seguro para as inseguranças dos adultos. É na infância que se define o mais básicos dos princípios, valores e traves mestras da nossa personalidade e das nossas crenças.

Se bem que possa parecer que aqui Pessoa cede à emoção, não penso que seja realmente o caso. Veja-se como Pessoa racionaliza o facto da emoção o confortar - ele não se limita a reconhecer que a emoção o conforta, mas associa a esse conforto pobre a realidade de ele ser um "enigma" e uma "visão". Para Pessoa a constatação de um facto não se fica apenas por essa mesma constatação e isso revela a sua necessidade permanente de racionalizar, de manter o controlo da sua mente e do que o rodeia. Esta necessidade de controlo absoluto - que se revela em todas as mentes racionais - é sinal óbvio dessa mesma infância perdida. É o pequeno rapaz que sentiu todo o seu mundo perder-se subitamente que tenta, enquanto adulto, racionalizar tudo à sua volta, de maneira progressivamente mais desesperada.

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